A única coisa que lamento é não ter conhecido o Lucas antes...
Conheci o Lucas na quarta-feira de cinzas de 2008, após ele se mudar para o bairro onde eu morava. Participávamos do mesmo movimento, o ONDA, em paróquias vizinhas e fizemos o mesmo REMO (retiro da segunda etapa do ONDA); não lembro de tê-lo visto antes, mas falavam que éramos muito parecidos, e tinham razão. Era normal andarmos pela diocese e nos perguntarem: Vocês são irmãos? No começo respondíamos que não, mas como era muito recorrente, as vezes falávamos que sim só para mudarmos um pouco a história. De fato, éramos irmãos em Cristo.
Nossa amizade começou por iniciativa dele, através de um convite. Lembro daquele dia chuvoso, sexta-feira, perto do meio dia, quando minha irmã atendeu ao telefone e logo se dirigiu a mim: é o Lucas, está te convidando para ir na casa dele jogar vídeo game. Na época eu não jogava muito vídeo game, mas aceitei. Mal sabia eu que aquele dia iria mudar completamente a minha vida.
A partir de então, passamos a nos ver em todas as sextas-feiras para jogar vídeo game. Juntávamos dinheiro e conseguíamos compra uma pizza (daquelas em embalagem de isopor) e uma Coca-Cola. E assim passávamos a tarde, comendo pizza e jogando vídeo game. Mas mais do que jogar, começamos a nos envolver cada vez mais no Onda. Naquela época nosso grupo paroquial era pequeno (eu, ele, a Tanise – minha irmã –, o Rodrigo e a Laura) e por um bom tempo foi assim. Porém, com a chegada do padre Alex como nosso pároco, começamos a ter formações e trabalhar mais na paróquia.
Tínhamos o anseio de fazer o ONDA do Fião grande novamente, então pegamos os quadrantes dos últimos anos e enviamos cartas para todos, convidando-os a retornarem. Algumas enviamos pelo correio, outras levamos de bicicleta nas casas das pessoas. Na época eu não tinha bicicleta, então íamos nós dois na dele. O Lucas ia nas pedaleiras atrás e eu ia pedalando – ele nunca foi um bom motorista hahaha. Em uma dessas andanças até o correio o Lucas me perguntou: “caso alguém te ameaçasse de morte se não negasse a Cristo, o que tu faria? ” Fiquei pensativo, era novo demais para morrer, mas falei que era melhor morrer com Cristo do que renegá-lo. Ele concordou comigo, disse que seria difícil, mas com certeza o certo a ser feito. Essa conversa me acompanhou por anos. Naquele momento, ação – do envio de cartas – acabou não trazendo muitos frutos, mas estávamos felizes, pois havíamos conseguido trazer algumas almas de volta à Igreja.
Com o tempo, o ONDA foi crescendo, nossa vida se resumia a escola e ONDA. Lembro que em 2008 o padre Alex chamou um ONDA de Novo Hamburgo para ajudar em nosso curso e mais uma vez Deus fez naquele final de semana laço eternos de amizade. Como o pessoal era da cidade vizinha, muitos ficaram na casa do Lucas, que era na frente da paróquia; eu, que morava a duas quadras de lá, também fiquei. Estávamos só pela bagunça. Não lembro ao certo quantas pessoas eram, mas cerca de 15 jovens haviam dormido espalhados pela casa naquele final de semana. Que grande final de semana, daqueles que posso lembra de tudo – a acolhida, os cantos, a missa...
Fomos crescendo e seguíamos sempre juntos. Não havia final de semana em que não nos reuníssemos, eu participava até dos almoços da família dele. Na época eu já tocava violão (ou era isso, ou dançar) e ele ainda não. Em uma missa de quarta-feira em que o pai dele, tio Juarez, tocou, eu pedi para tocar também e fiz uma piada com o Lucas: “tu só vem para carregar os instrumentos?”. Acho que esse foi o empurrão que ele precisava para começar. Tio Juarez tinha uma pasta enorme com cifras, e juntos começamos a tocar nas missas de quartas-feiras sozinhos. Uma vez ou outra a Laís, irmã do Lucas, nos ajudava, mas ele aprendeu a cantar e juntos tocávamos.
Por um bom tempo trabalhamos nos afazeres da paróquia, depois Deus nos pediu mais e fomos trabalhar em outros ONDAs, implantações em Gramado, Santa Maria do Herval, paróquia da Conceição em São Leopoldo, nos REMOs, em festas na paróquia, etc. Depois de um tempo, o Lucas veio com uma história de “direção espiritual”; achei um pouco demais, mas pedi que ele fosse e depois me contasse como era. “Caique, eu saí muito mais leve e renovado!”. Mas aquilo não era o suficiente para mudar minha cabeça. E, realmente, os hábitos do Lucas após a direção começaram a mudar: a vida de oração dele era muito melhor, as conduções de orações e adorações foram se tornando cada vez mais profundas e próximas de Cristo.
Lembro de uma cena em que escrevemos uma peça de como o ONDA foi criado para um encontro diocesano do ONDA, em que, na história, havia uma “Kombi celestial”. Em um dia da semana, à noite, nos reunimos – eu, o Lucas e outro amigo, o Vitinho – para montar a Kombi com madeira e papel pardo. Estávamos desenhando e pintando a Kombi quando algo me chamou a atenção:
- “Viver pra mim é Cristo, morrer pra mim é ganho...” cantava o Lucas.
- “O que é isso, Lucas? Que horror!” disse eu.
Então o Lucas me explicou que era uma música nova que havia conhecido, mas que só lembrava daquela parte. E assim foi a noite toda, até terminarmos: “viver pra mim é Cristo, morrer pra mim é ganho...”. E essa música foi tocada muitas e muitas vezes. Mal sabia eu que essa seria uma preparação para o que viria no futuro.
Lembro que naquela mesma época o Lucas conversou comigo e disse que o ONDA já não preenchia mais o coração dele, por isso tinha decidido sair e ir para águas mais profundas. Começou a ajudar em uma capela no Morro do Paula, um bairro de São Leopoldo, de gente humilde e que necessitava de ajuda. Via no olhar e nas histórias dele a satisfação de ser um “missionário”.
Fomos crescendo, a amizade sempre forte, mas os encontros não tão frequente como antes. Tínhamos nos tornado adultos e, consequentemente, adquirido novas responsabilidades, porém sempre dávamos um jeito de nos ver ou conversar por mensagem de texto. Aos poucos nossas vidas foram tomando uma nova forma, trabalhávamos, estudávamos na mesma faculdade e pudemos, várias vezes, voltar juntos de Porto Alegre e sair para comer um xis à noite. Em uma dessas noites, ele me confidenciou que, em seu coração, não suportava mais continuar apenas como namorado da Letícia, que já estavam vendo um apartamento e aos poucos montando tudo, se preparando para um passo maior: o casamento.
Eu sempre fui mais de planejar, ter certeza de onde pisar. O Lucas não, se entregava e acreditava fielmente na providência divina. Tentei aconselhar, dizendo para que pelo menos terminassem a faculdade antes, mas para ele já estava decidido e eu acolhi a decisão com muita alegria. Do noivado ao casamento pude viver a alegria de ser padrinho e participar desse momento de grande benção. Para mim, era quase o meu casamento também. Ele queria muito fazer um momento surpresa de dança com os padrinhos no dia do casamento. Eu odeio dançar, tentei tirar isso da cabeça dele, mas não consegui. E como ele não dizia “não” quando eu pedia algo a ele, também não disse. Um dos ensaios foi na academia do tio Ferreira, em Novo Hamburgo, e enquanto esperávamos o pessoal chegar, ficamos conversando com o tio. Naquele dia ele disse ao Lucas: “cara, tu mudou a minha vida. Antes eu era brigão, não podia acontecer nada que já queria brigar com as pessoas. E quando fui na reunião de pais do ONDA da minha filha , as palavras que ouvi de ti mudaram a minha vida. Passei a ser um cara mais controlado. Esses dias um cara bateu no meu carro e ele queria brigar comigo, mas eu falei que estava tudo certo e que era melhor ele ir embora. Em outro momento da minha vida, eu teria partido para cima dele”. Aquilo me chamou muito a atenção. Como é gratificante saber que a partir do testemunho de vida dele, alguém pôde mudar o seu modo de viver.
Uma semana antes de sua páscoa, o encontrei na despedida de solteiro da Laís e do André – sua irmã e seu cunhado – e percebi que no seu braço haviam manchas rochas muito fortes. Achei estranho, perguntei do que se tratava e ele me respondeu que estava investigando, mas que achava que era do estresse. Estava passando por muitas coisas... final de ano, casamento da irmã, provas finais, trabalho, etc. Nunca tinha visto aquilo, mas como ele estava investigado, deixei para lá. Naquela noite, a Leti e o Lucas me levaram em casa e no caminho percebi que ele estava muito cansado no banco do passageiro, como se estivesse desmaiando de sono. O Lucas festeiro de antigamente não era mais o mesmo. Naquele dia, sua doença já dava sinais. Foi a última vez que o vi.
Na semana, algo de muito estranho estava acontecendo. A mãe do Lucas, tia Vivi, me mandou uma mensagem na terça à noite, dizendo que o Lucas não estava bem e que precisaria fazer uma transfusão de sangue. Para mim não tinha caído a ficha, e como sempre arranjávamos um jeito para as coisas, perguntei se precisava de doadores, caronas... mas naquele momento, não havia nada ao meu alcance, exceto rezar. Na quarta-feira de manhã veio a notícia, Lucas estava com Leucemia. Meu chão caiu. Estava trabalhando e não queria transparecer que algo errado estava acontecendo. Cheguei em casa à tarde junto com a minha irmã e quando entrei em casa comecei a chorar. Algo em mim dizia que a partir dali as coisas seriam muito difíceis.
A todo momento queria notícias, ir onde ele estava, estar com ele, mas não era possível. Fiquei em casa, rezando (e chorando). Recebemos a notícia de que o câncer dele era, de fato, o mais agressivo, e que as primeiras 48h eram de extrema importância. 48 horas que para mim duraram uma eternidade. Mas estava confiante de que ele venceria aquilo. Naquele dia 5 de dezembro de 2018 eu enviei uma mensagem para ele perguntando como ele estava, ele me respondeu que estava cansado. Mandei que estava rezando, que iriamos sair dessa e que o amava muito, ele respondeu com dois corações.
Na quinta-feira fui para a faculdade, mas não consegui estudar, então voltei para casa. Antes de ir embora imprimi uma foto dele para deixar nas irmãs carmelitas, pois em tantas outras provações ele havia sempre recorrido à intercessão delas. No trem, recebi a mensagem de que ele havia piorado. Eu estava desolado. Em casa, não conseguia me acalmar, rezava o terço pedindo intercessão de nossa mãezinha. Dormi rezando e acordei com o Gugu (Maiquel, grande amigo nosso, fruto daquele curso que contei no início, em que todos dormimos na casa do Lucas) às 3h da manhã dizendo que o Lucas havia piorado e que estava indo para a casa do tio Juarez e da tia Vivi para fazer uma vigília por ele. Levantei e fui tomar um banho rápido para poder ir também. Pouco depois o Gugu me ligou novamente, proferindo as palavras que lembro até hoje: “Caique, nosso grande amigo não resistiu”.
Não sabia o que fazer, meu amigo, meu grande amigo já não estava mais conosco. O que seria de nós? O que seria da Leti? O que seria da família dele? Como seria agora? Pois naquele dia ocorreria a ordenação presbiteral do Cléber, nosso amigo, o casamento da irmã dele no dia seguinte... O que íamos fazer? Eu estava destruído, arrasado, sem chão. Gugu e Tau (esposa dele) foram até minha casa, depois minha namorada Letícia também chegou. Recebemos a ligação de que o coração dele ainda batia, já muito fraco, e que se quiséssemos poderíamos ir até o hospital dar o nosso último adeus.
Chegamos lá, ele estava na UTI, que como todos sabem é um ambiente muito controlado, em que não se pode ter aglomerações. Chegando ao seu quarto, nos juntamos – eu, Letícia (minha namorada), Gugu, Tauane, padre Cléber, Laiana e Cesar – à família e aos amigos que já lá estavam: tio Juarez, tia Vivi, padre Alex, padre Diego, André, Laís, Letícia (sua esposa), Filipe e Rosherie; Outra amiga, a Charlene, chegou também depois. Passado mais um tempo, o Vitinho me ligou dizendo que queria ir lá, mas respondi a ele que não havia mais nada a fazer. O Lucas e o Vitinho sempre foram muito parecidos, naquele momento não foi diferente. Vitinho veio se juntar a nós na UTI aos pés do Lucas. Ele estava ali, respirando muito fraquinho, quase imperceptível, e seu coração ainda batia. Logo me veio Jesus abandonado de Chiara Luce à cabeça, naquele momento de cruz, em que estavam somente Maria e outras poucas pessoas junto aos pés da cruz. Eu estive aos pés da cruz do Lucas, e não poderia estar em outro lugar naquele momento.
Ficamos ali juntos, rezando, conversando com ele, e pedindo um milagre a Deus. Mas já não havia o que fazer. Lembro que na noite anterior ele postou no status do WhatsApp: “Pai, afasta de mim esse cálice. Contudo, não seja como eu quero, mas sim como tu queres”; e assim o foi, como Deus quis. Nenhum retiro que fui até hoje vivi profunda espiritualidade como naquele momento. O Deus alegre e feliz que vemos no ONDA, deu lugar ao Cristo sofrido e pregado na cruz, porque escolheu amar. O Lucas também decidiu amar e entregou sua vida à Cristo.
Seu coração aos poucos foi diminuindo, parando, até o momento em que parou de vez. “Senhor entrego a ti o melhor amigo que eu poderia ter. Assim o seremos para sempre, bons amigos que nasceram pela fé”. Um pedido dele foi que tudo fosse mantido, tanto a ordenação quanto o casamento. Para o mundo era loucura celebrar esses dois sacramentos em meio à tanta tristeza. Mas Deus sabia que uma grande tristeza pode ser amenizada com duas grandes alegrias.
Após a ordenação, fui até a paróquia Nossa Senhora das Graças, onde estava ocorrendo o velório. Chegamos lá e havia muita gente, fila do altar à porta para poder passar por ele, pessoas sentadas nos bancos, nas laterais e muitos carros estacionados no pátio. Quando estava sentado ao lado dele, um homem sentou comigo e perguntou: “vocês são irmãos?”; eu respondi com grande alegria que sim, não dos mesmos pais, mas éramos irmãos. Ficamos a noite toda, saímos as 5h para dormir um pouco e voltamos antes das 8h para a missa de corpo presente. Na missa não haviam mais locais para sentar, quase nem para ficar de pé dentro da paróquia. Todos ali conheciam o Lucas. Que missa! Do jeito que ele gostava de fazer, o melhor para Cristo. As músicas foram lindas, a homilia do padre Diego sem defeitos e reconfortante. Após o enterro, em volta de sua lápide, todos nós nos abraçamos, assim como se faz no final da missa de um retiro. Senti durante aquele dia, que também era o dia do meu aniversário, a alegria de ter vivido esse tempo com o Lucas, de Deus ter me proporcionado sua amizade verdadeira e sincera, e de ter entregue a Deus aquele jovem que mudou a vida de muitos.
Hoje sua partida ainda dói, mas acredito com ainda mais certeza que um dia estaremos juntos contemplando o amigo nos uniu: Jesus. Não passo um dia sem lembrar do Lucas e rezo todos os dias pedindo sua intercessão. Pode ser que ele não alcance os altares das igrejas, mas tenho a certeza que já ocupa o altar de muitas casas e de muitos corações.
Carlos Henrique de Lima
20 de setembro de 2021